Os militares agiram rapidamente. Abriram a porta da sala do andar superior do sobrado na esquina das ruas Anita Garibaldi com Ilhéus e entraram sem pedir licença. Só estavam no lugar os empregados da barbearia e do consultório odontológico. Reviraram os papéis com o olhar dos censores: tudo que lembrasse o comunismo estava condenado a desaparecer. O empastelamento destruiu a memória do passado: quase trinta anos do Sindicato dos Bancários de Santa Catarina foram apagados quando os milicos rasgaram documentos e livros de ata, empilharam os papéis no meio da rua e fizeram uma fogueirinha.
A história virou cinza. Era nas primeiras semanas de abril de 1964 e o clima na cidade não estava para brincadeira. Uma centena de bancários que, semanas antes, reuniram-se para discutir se entravam ou não em greve, agora alteravam as agendas para uma rotina militar: casa-trabalho-casa. Nenhum passo fora do ritmo imposto em 1º de abril.
Nem precisava. Da diretoria do Sindicato, eleita em 1963 e formada exclusivamente por anticomunistas militantes, foram todos cassados, exceto o segundo tesoureiro, Enio Machado de Andrade, que ficou para contar a história. O presidente, Ademi Pereira de Abreu, foi diácono da Catedral Metropolitana por muitos anos e, logo após o golpe, liderou o grupo anticomunista que ateou fogo à livraria dos comunistas Salim Miguel e Eglê Malheiros, que ficava na Praça XV, no prédio histórico onde hoje é a agência do Bamerindus.
Nem por isso deixou de ser cassado. O ex-presidente Carlos José Gevaerd foi preso logo depois do golpe, ainda no Rio de Janeiro, para onde fora participar de uma reunião de dirigentes da CONTEC. Ficou por alguns dias numa cadeia, com água pela canela, até que conseguisse explicar que apoiava o movimento militar. Ser dirigente sindical, em si, já era problema. Tanto que Gevaerd e seus companheiros foram imediatamente punidos com a cassação do mandato e ordens de transferência para agências de Amazonas ou Mato Grosso. Decepcionado, Gevaerd demitiu-se do Banco do Brasil e foi dar aulas na Universidade Federal de Santa Catarina.
1965 - Criado o cruzeiro novo.
1968 - Em 02 de dezembro são presos 1.240 estudantes que participavam do 30º Congresso da UNE em Ibiúna (SP), no dia seguinte é decretado o AI-5.
A intervenção no Sindicato de Santa Catarina só não se consumou graças à mediação da titular da Delegacia Regional do Trabalho, que garantiu aos militares que no Sindicato só tinha gente boa. O interventor já estava até nomeado: seria um advogado. O balanço do estrago causado pela ditadura nos registros históricos do Sindicato só poderia ser feito meses mais tarde, quando Enio Andrade pôde voltar a entrar na sede da entidade. O prejuízo era irrecuperável. Parte dos documentos salvou-se e foi escondida na sede da Federação dos Bancários, que resistira incólume à investida militar sobre as entidades sindicais. No sobrado em que estava a Federação, na rua Tiradentes ao lado do Círculo Operário e em cima da Dental Santa Apolônia, havia um sótão, perfeito para driblar a censura.
A devastação afastou os bancários do passado e do futuro. A ação política do Sindicato se conformaria, nos próximos anos, aos limites impostos pela ditadura. A categoria era pequena; havia menos de cem sindicalizados, reunindo os bancários do BNC, BB, Inco, Besc, BDF e Banco do Paraná e Santa Catarina - segundo Enio Andrade, que assumiu interinamente a presidência, articulou nova chapa para as eleições de 1965 e foi escolhido presidente.
Num sindicato de dimensões modestas, não havia muito a fazer exceto deixar a política de lado.O mês de outubro de 1968 é um exemplo da convivência na mais das vezes harmoniosa da entidade com o novo regime. No dia 12, os militares prendiam 1.240 estudantes que participavam do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado clandestinamente em Ibiúna. No dia 24, a casa do arcebispo pernambucano D. Hélder Camara foi metralhada.
Se no centro dos principais acontecimentos políticos do país pairava a violência e a repressão, aqui os tempos eram de prosperidade. Em 29 de outubro, o Departamento Nacional do Trabalho autorizou a diretoria do sindicato a alienar o prédio da rua Tiradentes, 20, para comprar uma nova sede - salas no Edifício Tiradentes, na esquina da rua Nunes Machado com Tiradentes. A autorização para a mudança havia sido aprovada em assembléia da categoria, realizada em 7 de março. O documento vinha assinado pelo ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, que no dia 13 de dezembro assinaria, com o presidente Costa e Silva, o Ato Institucional número 5, que forçaria o Congresso ao recesso e se tornaria o marco principal do endurecimento do regime.
A rápida gestão do PCB
O Sindicalismo em todo o país foi condenado a desaparecer sob a ditadura. Mas nem todas as diretorias do Sindicato dos Bancários de Santa Catarina durante os anos de governo autoritário aconchegaram-se aos braços dos militares.
Um núcleo de militantes do Partido Comunista Brasileiro teve a oportunidade de comandar a entidade por três anos, de 1969 a 1972, esboçando traços de resistência ao regime. Mas a gestão do PCB foi exceção, não regra.
Enio Machado de Andrade foi eleito presidente da Federação e substituído no Sindicato por Herbert Hadlich, nas eleições de 1967. A nova gestão foi interrompida drasticamente. Hadlich, descendente direto de alemães que migraram para Blumenau no final do século anterior, trabalhava normalmente como escriturário do Banco Inco quando, no final da tarde, afastou a cadeira para trás, levantou-se e foi atingido por um infarto fulminante.
Consternado com a tragédia, 0 sucessor de Hadlich foi Pedro Natali, que nos anos seguintes dirigiria também a Federação dos Bancários, quando Enio Andrade abandonasse a militância sindical para se dedicar à Cooperativa Habitacional lntersindical. Nos dois anos seguintes, à sombra da gestão de Natali foi sendo montada uma com posição política ligada ao Partido Comunista Brasileiro, que embora clandestino procurava atuar nas várias frentes de movimentos - das universidades às organizações operárias. O núcleo inicial de articulação das forças desta vez não estava no Banco do Brasil, como era tradicional na história do Sindicato, mas no Banco do Estado de Santa Catarina.
Diretores da Associação dos Funcionários do Besc catalisaram a formação de uma oposição a partir de uma publicação, O Centavo. Os bancários Gerônimo Wanderley Machado e Nelci de Andrade contestavam no boletim a política de recursos humanos do banco e enfrentavam a repressão da diretoria do Besc. Gerônimo era funcionário do banco desde 1966, estudante de Economia e militante de movimento estudantil na Universidade Federal de Santa Catarina. Em 1969, teve sua candidatura cassada, para a eleição do Diretório Central dos Estudantes da UFSC.
Do núcleo da Associação do Besc saíram candidatos para a chapa que venceria as eleições para a nova diretoria do Sindicato em 1969. O novo presidente, Valei Lacerda, era funcionário do Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Houve eleições municipais naquele ano (ou em 1972) e Lacerda concorreu a vereador pelo MDB, com votação razoável. O objetivo do grupo de retaguarda do PCB era manter uma ação política, sem eliminar o eixo assistencialista. Mas a diretoria foi se fragmentando e inviabilizando uma atuação mais efetiva. Militantes como Lacerda tinham medo de ser punidos pelos patrões logo que o mandato sindical acabasse - e foi O que ocorreu.
Em fevereiro de 1972, a diretoria do sindicato viveria uma das mais graves crises políticas internas durante a ditadura. Apoiada no esvaziamento da diretoria, a DRT mandou formar uma junta governativa. A diretoria, liderada por Lacerda, resistiu. O delegado Cyro Belli Müller, homem de confiança dos militares, manteve a ordem de eleger uma junta em assembléia no dia 2 de março de 72.
No dia 24, a diretoria do sindicato enviou nota aos bancários para esclarecer a situação e pedir O apoio da categoria. A nota era assinada por Lacerda (presidente), Galvani Souza Bochi (Secretário geral), Nelci S. de Andrade (2º Secretário), Luiz Lopes
(1º Tesoureiro), Tertuliano x. de Brito (2º Tesoureiro), Yoldory c. Garofallis e Adernar Cúrcio (Conselho Fiscal).
A tentativa daquela vez não deu certo. No dia 2 de março, assembléia geral secretariada por Gerônimo Machado elegeu a junta provisória. O assessor jurídico da entidade era Roberto João Motta e o ajudante de secretaria, Nelson Gomes Caldeira. Com 99 votos, Lacerda foi eleito presidente da junta por um mandato de 90 dias, com a tarefa de coordenar a realização da eleição da nova diretoria para um novo triênio.
A chapa derrotada recebeu 59 votos e era formada por Odemir Faisca (pres.), Ilson Ulmer Dias (secr.) e Carlos Antônio da Silva (tes.). Apenas um bancário anulou seu voto. O nome de Ilson Dias aparecia pela primeiravez numa disputa eleitoral no Sindicato. Menos de três meses depois, a junta provisória convocaria nova eleição, que Dias disputaria novamente - desta vez, para ganhar. Quando as urnas foram abertas, em 12 de maio, descobriu-se que a Chapa Verde, liderada por ele, vencera a Chapa Azul por 307 a 282 votos. A soma dos votos brancos (13) e nulos (15), destinados à Chapa Azul, poderia ter mudado a história da entidade. Não foi o que aconteceu: começava ali o império de Ilson Dias, que se arrastaria por 15 anos.
Do núcleo original de militantes do PCB, não sobrou nada . A candidatura de Gerônimo Wanderley Machado à presidência da Federação dos Bancários foi lançada e derrotada nas urnas - o eleito foi Pedro Natali. A repressão pelos bancos e pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) dispersou os núcleos de militantes. Em 1974, Gerônimo saiu do país; em 75, foi excluído do emprego no Besc.
- Nós pegamos a pior época da história do Sindicato. Mas a história é feita também pelos resistentes. O pessoal jovem da época manteve acesa a chama, o bastão que foi retomado pelo novo sindicalismo, afirma Gerônimo Wanderley Machado.
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