Vista geral da cidade na década de 1930/ Foto Anacleto
Maio de 1935 foi um mês particularmente seco na história de Santa Catarina. Florianópolis era castigada pela falta d'água. "A prolongada estiagem, talvez a maior de que há memória, tem contribuído para a falta de luz, quase completa, em que mergulha a cidade. Maio vem incendiando a terra com seus dias de sol, banhando-a toda no oiro fulvo da sua luminosidade", retratava José Diniz, em texto para o jornal O Estado. Na última semana do mês a temperatura máxima rondava em torno de 23 graus, às 13h e a mínima em 14 graus, de madrugada.
Os moradores da Capital se divertiam com as esculturas em areia de José Tamborilli, no Jardim Oliveira Bello, perto do monumento comemorativo aos heróis da guerra do Paraguai, na Praça XV de Novembro. Para o sábado, dia 25, ele prometia erguer a imagem de "Christo", um dia depois de esculpir o "Symbolo do Farroupilha". O Cine Imperial apresentava, às 19h30min, O Passado de uma Mulher; o Royal estampava o cartaz de Casino Fluctuante; o Odeon, em programa duplo, exibia A Chave e Visão Fatal, às 18h30min e às 20h30min. No domingo, as famílias iriam se divertir passeando em carrinho de burros da Praça XV até a Estação Agronômica. Na rua dos Ilhéus, esquina com Álvaro·de Carvalho, os boêmios se reuniriam no bar em frente ao teatro.
1935 - Bette Davis ganha o Oscar de melhor atriz por sua interpretação em 'Perigosa "
Durante muito tempo, a cidade daria aos viajantes a impressão de abatimento e os próprios moradores costumavam dizer: "Tudo o que pode dar de errado, em Desterro dá". A vida era pacata e ficou assim por muito tempo. A população se multiplicava lentamente: em 1900, eram 32.200 ilhéus; 20 anos depois, 41.338; em 1950, 51 mil. Nesses 50 anos, nem chegou a dobrar; nos 40 anos seguintes, a população ficaria cinco vezes maior.
Um jornal de 1959 descrevia assim a cidade: - Açorianos se estabeleceram e se multiplicaram na ilha e arredores. Até hoje, o povo conserva um sotaque pitoresco e a entonação de sua voz é característica. Funcionários públicos, uns poucos estudantes e desocupados, passam horas sentados nos bancos do jardim da Praça XV de Novembro. Nos cafés, sempre repletos, resolve-se todos os problemas da humanidade. _O povo é profundamente bom. Entre os "diz-que-diz" da cidade pequena, todos se conhecem, se caricaturam, se xingam e se ajudam mutuamente. Acima de tudo são humanos. Pitorescamente humanos, sensíveis e capazes de sacrifícios por outrem. (Folha da Tarde, 31 de janeiro de 1959, citada por Glauco Carneiro em Florianópolis: Roteiro da Ilha Encantada).
Sindicato, foices e martelos
Os jornais de maio de 1935 traziam no alto da primeira página o relato da disputa entre patrões e empregados do setor de hotéis, restaurantes e similares. Os trabalhadores ficaram em greve por quase um mês. Queriam reajustes de 10 a 30% nos salários, que não tinham sido aumentados nos últimos dez anos. Os empregadores contestavam a radicalização e afirmavam que não dariam nada. Os patrões cederam depois de pressões públicas, através do jornal A Gazeta. O apoio do jornal era grande novidade, num tempo em que as páginas de imprensa tinham menos notícias que anúncios de remédios como a pasta de dente Eucalol, o Elixir 914 (para reumatismo e sífilis), e as Pílulas do Abade Moss (indicadas para oito males, entre os quais "gênio rascível" e "calor na cabeça").
Os ânimos sindicais estavam exaltados desde o início da década. O "calor na cabeça'.' aumentou quando Getúlio Vargas assumiu o governo na esteira da Revolução de 30. Um forte núcleo de militantes comunistas se esforçava para articular um conjunto de sindicatos em torno de propostas de ação conjuntas e abria espaço na esfera pública. O Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil de Florianópolis englobava operários, metalúrgicos, carpinteiros e eletricistas e liderara, na segunda metade de 1934, um movimento em defesa de piso salarial para a categoria. Houve conquistas discretas e uma divisão drástica: com o apoio patronal, logo foi fragilizada a base da entidade, com a criação do Sindicato dos Metalúrgicos.
A primeira greve em Florianópolis ocorrera em 1931, segundo Manoel Alves Ribeiro, citado por Celso Martins em seu livro Os Comunas. O Sindicato dos Padeiros liderou a greve por três dias, que levou à conquista de uma mudança no sistema de trabalho aos domingos, quando a jornada era de um dia inteiro. Depois de ficar sem pão, a cidade viveu a experiência de ficar sem transporte, quando os carroceiros cruzaram os braços por dois dias, exigindo aumento salarial.
Os comunistas, que lideraram todas estas iniciativas, tentaram fortalecer a organização dos trabalhadores no inverno de 1935, com a criação da Coligação dos Sindicatos - uma espécie de CUT regional. Num sábado de julho, reuniram-se no Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, na Conselheiro Mafra, 25, operários, garçons, bancários, padeiros, gráficos, metalúrgicos, comerciários e estivadores. O ex-deputado comunista Álvaro Ventura tomou a palavra. O discurso foi assim descrito pelo jornal O Trabalho: - Discorreu sobre a vida do trabalhador e disse que este não só devia lutar economicamente, mas também politicamente, pela sua emancipação.Censurou o procedimento daqueles que se aproveitam das situações para massacrar os trabalhadores, e terminou pedindo que seus companheiros prestigiassem a ação da Coligação, que no momento se acabava de fundar. (07/07/35, citado por Celso Martins).
O prestígio durou quase nada. Semanas depois, na reunião marcada para o dia 27, o Sindicato dos Bancários e a Associação dos Comerciários anunciavam a retirada do apoio à Coligação. Os sindicatos remanescentes apelaram para a unidade, afirmando em nota publicada nos jornais que a iniciativa não era "uma novidade em Florianópolis", mas sim "a continuação do que vem se fazendo em todos os estados do Brasil para a unificação, cada vez mais estreita, da grande família operária nacional". A nota ia além: "Não podemos prescindir" da vossa colaboração. Vós sois classes 'leaders' entre as demais. Em todos os estados do Brasil a classe de bancários representa o valor máximo da intelectualidade trabalhadora de nossa Pátria".
O bancário Sebastião Vieira foi nomeado para conversar com os sindicatos de bancários e comerciários, mas não obteve sucesso. Sem o apoio de todos os sindicatos da Capital, a Coligação deixou de existir.
- Se não deu certo do ponto de vista dos que organizaram os trabalhos, serviu para mostrar queno movimento sindical do estado duas correntes mais definidas se formavam - afirma Celso Martins. De um lado os comunistas, já assumindo a liderança entre as demais forças de esquerda e inclusive os remanescentes do anarquismo e do socialismo pré-marxista, de outro as lideranças mais conservadoras, algumas ligadas ao aparato de Estado, outras não, mas que não se afinavam com as pregações que os "extremistas" vinham fazendo. Contra o "extremismo". Bem assim o Sindicato dos Bancários agiria nos anos seguintes e em boa parte de sua história.
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